“Não nos devemos eternizar numa instituição”
Texto Nélia Pedrosa Fotos José Ferrolho in Diário do Alentejo 14/08/2014 https://da.ambaal.pt/noticias/?id=6190
O atual contexto de crise económica tem levado a um aumento do número de pedidos de apoio à Caritas de Beja?
Sim. A crise começou em 2008 com a questão da crise alimentar em que houve uma inflação de preços dos alimentos e a partir daí temos vindo a registar um aumento. O que verificamos atualmente é que o perfil das pessoas que nos pedem ajuda é um pouco diferente. Temos vindo a registar um aumento, por exemplo, de famílias monoparentais, mulheres com filhos a cargo e sem rendimentos ou com muito poucos. São problemáticas um pouco diferentes das que víamos anteriormente. Obviamente que a questão do desemprego, toda a crise que estamos a viver, afeta também as relações dentro da família. Os divórcios, as separações, têm também aumentado e portanto existem mais famílias monoparentais.
Em que tipo de apoio é que se verifica, então, este aumento e quem é que o solicita?
Na questão alimentar. Desde junho do ano passado que a Segurança Social criou uma nova resposta que me parece extremamente importante, que são as cantinas sociais. Temos um protocolo com a Segurança Social para fornecer 100 refeições diárias a pessoas sem rendimentos ou com muito poucos e ultrapassamos sempre esse número. E verificamos que uma percentagem muito alta são exatamente famílias monoparentais com crianças pequenas, o que realmente nos preocupa. No apoio domiciliário, por exemplo, ao nível dos idosos, temos vindo também a registar um aumento de pedidos e neste momento estamos com a capacidade máxima, 76 utentes. Temos já lista de espera. Estamos a dar uma atenção especial à diminuição da solidão e do isolamento dos idosos, e talvez por isso também temos vindo a registar esse aumento de pedidos para integrar essa resposta. Também a questão das doenças do foro psiquiátrico, nomeadamente depressões. Temos registado um aumento de pedidos de apoio para compra de medicamentos.
Para além das famílias monoparentais, há mais algum tipo que se destaque por ser novidade?
Temos também famílias que podemos considerar de classe média. Algumas situações em que um dos membros do casal ficou desempregado ou situações de redução dos rendimentos e as pessoas têm dificuldade em cumprir com as obrigações anteriormente assumidas. Temos também muitas pessoas com ordenados penhorados. Pessoas que supostamente têm um ordenamento razoável mas que os rendimentos não correspondem a esse ordenado porque estão penhorados. Temos situação em que as famílias têm a prestação da casa por pagar e em que nos solicitam ajuda para regularizar essa situação e nós temos tido aqui um trabalho bastante importante, penso eu, por vezes também em articulação com a DECO, no sentido de renegociar essa dívida de maneira a que a pessoa não perca a sua casa.
Quantas pessoas são apoiadas atualmente no refeitório e cantina sociais da Caritas e através da entrega de géneros alimentares (do Banco Alimentar Contra a Fome e do Fundo Europeu de Auxílio aos Carenciados – FEAC)?
Na cantina social temos protocoladas 100 refeições diárias com a Segurança Social, no âmbito do Programa de Emergência Alimentar, mas acabam por ser mais. Neste momento estamos a servir 122. Estas 22 a mais são suportadas pela Caritas. O objetivo é que seja só uma refeição por dia por pessoa, mas algumas levam mais do que uma, por isso são cerca de 90 pessoas. No refeitório social temos um protocolo para 20 utentes, com quatro refeições diárias. Essas pessoas também fazem a sua higiene pessoal na instituição e têm o tratamento de roupa e acompanhamento psicossocial. Ao nível do FEAC, cuja listagem é feita pela Segurança Social, são 1 362 pessoas. No ano passado foram 2 973. Há uma diminuição porque atualmente outras instituições no concelho e na cidade também já fazem distribuição de alimentos, mas não a tantas famílias como nós. No banco alimentar apoiamos famílias que não se enquadram nos critérios que a Segurança Social considera adequados para receber alimentos do FEAC, por exemplo essas pessoas de classe média que supostamente têm um rendimento mas que estão com necessidades a nível alimentar. Neste momento estamos a acompanhar mensalmente, na distribuição de cabazes, 66 famílias, o que corresponde a 158 pessoas.
Mas a cantina social é uma resposta temporária…
Sim e nós não sabemos se se irá manter ou não. E nem sabemos o que é que iremos fazer com as famílias no caso de a cantina deixar de existir. Na última vez o protocolo foi prorrogado só por mais três meses, até junho. As refeições que estamos a servir atualmente, embora a Segurança Social nos tenha dado indicação para continuarmos, ainda não estão protocoladas, mas sabemos que o acordo vai ser prorrogado por mais uns três meses. Mas não sabemos o futuro. E esta é uma resposta muito importante na nossa região, porque, efetivamente, estas famílias, como eu digo, muitas delas monoparentais, com crianças pequenas, necessitam mesmo dessas refeições.
E quantas famílias beneficiaram desde o início do ano do Fundo Social Solidário e Fundo Diocesano, criado em finais de 2010?
De janeiro a julho foram apoiadas 218 famílias, num total de 524 pessoas, e com uma verba de 25 835 euros. Durante o ano passado foram apoiadas 346 famílias, o que corresponde a 911 pessoas, e a 39 571 euros.
Há famílias a recorreram mais do que uma vez ao fundo?
Sim, muito embora a nossa perspetiva é que o fundo seja para dar apoio a uma situação de emergência pontual. Não pode ser um apoio regular, porque não temos essa capacidade financeira. O que se pretende é que através desse apoio a situação se possa resolver e que haja perspetivas de a pessoa voltar a estar numa situação equilibrada. Este ano tivemos alguns pedidos de apoio para pagamento do IMI, despesas de saúde e compra de medicamentos e também propinas. Alguns alunos estavam em risco de não concluírem ou darem continuidade à sua licenciatura por incumprimento. E depois para as despesas fixas mensais, o empréstimo ou renda, a luz, a água…
A Caritas tem capacidade de resposta para atender a todos os pedidos?
Não. Na cantina social e no banco alimentar já não nos é possível alargar a mais famílias, porque se não as que estão inscritas acabam por receber menos quantidade e isso não faz sentido. A nível dos apoios económicos [através do fundo] temos de fazer uma gestão muito equilibrada, porque temos o valor mensal que não queremos ultrapassar para podermos prosseguir, porque recebemos também através da Caritas Portuguesa um apoio mensal. Contamos também com donativos de particulares e empresas. O Pingo Doce é uma das entidades que nos fornece quase diariamente alimentos, é uma ajuda muito importante para as nossas respostas. Depois temos pessoas que nos fazem donativos em dinheiro, mas também em bens como roupa e outros materiais, e depois temos vários projetos como o Azeite Solidário, em que envolvemos os produtores de azeite e que é também uma ajuda muito importante para podermos confecionar as refeições.
Para onde são encaminhados os pedidos a que não conseguem dar resposta?
Articulamos sempre com a Segurança Social. Existem outras instituições na cidade que também têm cantinas sociais.
Quais são as suas expectativas para os próximos tempos?
Estou mais otimista em relação à nossa região, porque há todo um potencial agrícola, através do regadio, que se está a desenvolver e que se irá desenvolver bastante e que irá necessitar de pessoas para trabalhar, não só no trabalho mais duro do campo, mas também noutras áreas já com alguma formação, e daí que seja importante apostar nesta área. Acredito que a fase pior já está a passar e que podemos olhar para o futuro com alguma esperança.
O atual contexto socioeconómico, com o aumento do desemprego e do endividamento das famílias, alterou, de alguma forma, o vosso universo de intervenção?
Reforçámos o apoio ao nível da relação pessoal com as pessoas, através de eventos, atividades, e envolvendo muitos voluntários, exatamente pela questão psicológica, mas também para ajudar os utentes a descobrirem novos caminhos para poderem voltar a ser autónomos sem necessidade de recorrerem aos nossos serviços ou aos da Segurança Social. Conseguimos também ter o apoio de um médico psiquiatra que todas as semanas vem de Lisboa e que acompanha os nossos utentes nas diversas respostas. Um dos grandes problemas a nível nacional, desde sempre, tem a ver com a saúde mental e com os poucos recursos de que o Estado dispõe para apoiar essas pessoas.
Com as novas instalações da Caritas, inauguradas há dois anos, estava prevista a criação de uma comunidade de inserção e de um centro de dia. Em que fase estão estes projetos?
A comunidade de inserção abriu em dezembro do ano passado. A maior percentagem são mulheres. Quando pensamos em pessoas em situação de sem abrigo ou de maior exclusão pensamos que serão mais homens, mas a verdade é que aqui verificamos o contrário. As pessoas residem na comunidade e desenvolvem um programa individualizado com a perspetiva de virem a tornar-se autónomas. Muitas vezes são enviadas para formação, porque há um défice nessa área. Temos um protocolo para 16 pessoas e agora estão lá 10. São pessoas que não têm ocupação, que muitas vezes não têm suporte familiar. O centro de dia está em stand by, é uma resposta que consideramos que será importante, já falámos nisso à Segurança Social, mas por enquanto…. Gostaríamos que tivesse capacidade para 10 a 15 pessoas.
Quais são atualmente as principais dificuldades da Caritas?
Não podermos dar uma resposta a todas as pessoas que recorrem a nós, porque os nossos recursos também são limitados. Não posso dizer que temos muitas problemáticas, porque tentamos gerir as coisas de acordo com a nossa capacidade, com os recursos que temos, dando sempre uma resposta o melhor possível. Obviamente que seria bom se pudéssemos ter mais donativos, se pudéssemos ter o centro de dia, alargar o apoio prestado. Mas tendo em conta os recursos humanos de que dispomos não podemos ir muito para além, porque é muito desgastante, porque as pessoas que apoiamos têm muitas problemáticas. Isto não é um trabalho burocrático, só de secretária, há também a parte dos afetos.
E em tempos de crise os donativos diminuem?
No peditório público da Semana Nacional da Caritas, por exemplo, não sentimos uma diminuição, antes pelo contrário, aumentou, até porque envolvemos mais voluntários. Em relação aos nossos donativos está mais ou menos igual. Há sempre uma pessoa que aparece e que dá um donativo maior que nos equilibra. As coisas têm aparecido, obviamente que se houvesse mais donativos podíamos fazer mais. Temos que fazer aquilo que podemos com o que temos, porque temos que ter sempre uma gestão equilibrada.
Deixa a presidência da direção da Caritas no mês de setembro. Qual é o balanço que faz destes 10 anos à frente dos destinos da instituição?
Estes 10 anos foram muito gratificantes. Aprendi muito. Ao iniciar as minhas funções em 2004 não tinha experiência muito aprofundada nesta área, embora fosse presidente de uma Caritas paroquial [de Serpa] e portanto tinha alguma noção, mas obviamente que é totalmente diferente. Isto é como gerir uma empresa, porque há toda a questão financeira, dos recursos humanos, das relações institucionais, da representação da instituição. Há competências que tive que desenvolver. Também foi muito gratificante ver esta equipa que trabalha na Caritas, que veste a camisola, pessoas que se empenham muito a dar o seu melhor, e também os nossos voluntários. Ao nível da comunidade, no geral, também tivemos sempre um apoio muito grande, assim como do senhor bispo, que foi extremamente importante. A instituição cresceu, está equilibrada a vários níveis, não somos ricos mas temos as contas equilibradas. Penso que deixo uma instituição que está bem organizada e isso também é bom.
Foi uma decisão muito pon-derada?
Sim. Este cargo, que exerço a nível de voluntariado, é muito exigente. Tenho quatro filhos, marido, e penso que agora é tempo de voltar a dar mais apoio à família. Penso também que não nos devemos eternizar numa instituição, acho que não é saudável. Acabamos por, sem dar por isso, senti-la como se fosse nossa. Como a instituição está equilibrada penso que é a altura certa para passar o testemunho.
Fica algum projeto por concre-tizar?
Temos sempre ideias novas, de acordo com as necessidades. Mas uma das questões que considero que deveremos reforçar é a questão da angariação de fundos a nível da comunidade, porque o Estado vai ter cada vez mais dificuldade em apoiar as instituições e nós não podemos estar tão dependentes do Estado a nível financeiro, temos de abrir horizontes.
Deixar uma resposta